A crítica traduzida para a sua lingua!
“ Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!” (Guimarães Rosa)
Nunca nos interessou essa permanente reinvenção do horror, chamada agora por velhos sem talento algum, de a nossa Idade de Ouro! Lamentavelmente, a frouxidão das múmias segue sendo o poder dominante. O poder de nada mudar! É o país das novelinhas enebriadas de fascismos. Um chamamento à excitação com a animalização do coletivo, onde até a favela virou espaço brejeiro onde o frenesi é rebolar. Mas… o Brasil virou isso? Esta é uma das questões que apresentarmos antes de falar de um filme que se destaca e não integra a cesta de produções mercantis.
Voltando a nossa reflexão inicial… digamos que o país é o “desenredo” do que poderia ter sido a felicidade, num Brasil jovem como o nosso. Na verdade, vive-se uma encruzilhada feia de perdas, dores, neblinas e horrores. Repetindo: aqui ainda manda o poder de nada mudar, numa sequência de revoluções passivas, sim, exatamente do conceito de revolução passiva teorizada por Gramsci, e adiante retomado por Florestan Fernandes para refletir o caso brasileiro.
O ser desumano baixo, impregnado de mortes. A dos outros, e a dele próprio, trazendo em si uma trágica encenação de prazer algum. É o Brasil, mas também é o nosso cinema sem expressão profunda alguma. Nem vamos perder o nosso precioso tempo com críticas às novelinhas. Pois não pode haver conquista alguma com o mercado ocupado pelo pelas produções estrangeiras ruins, ou as de dentro. Os da TV não salvarão nosso cinema.
Perguntamo-nos constantemente como abrir novos espaços? Como não depender de velhas múmias ou da burocracia defendida pelo poder. Como não ser comum, igual ou idiota? O faz-de-conta da bobagem celestial nunca nos tocou. Essa “estonteação” do humano serve aos papas, padrecos, bispos e pastores – nunca a poesia de um longa como Faroeste (2012). Toda essa reflexão para falar de um filme, para pensarmos o país pelas lentes do cinema. Por quê não? Especialmente numa era na qual não se produzem textos mais analíticos, com suporte em pesquisas de fôlego e informações sólidas. Hoje, a hegemonia é de textos superciais, tanto nos jornalões como nos revistões nacionais.
Faroeste é um filme mais que ousado e original de Abelardo de Carvalho. E se é verdade como dizia Goethe que: “A poesia é a linguagem do indizível”, o filme em questão torna-se, nesse nosso marasmo cultural, de uma força infinita. Ainda hoje, uma imagem trágica do Brasil rural.
O país da explicitação do abuso de um poder arcaico, ainda mítico-religioso fundamentado na fantasia delirante de deus e do diabo, na violência e no sangue. Na crueldade do sofrimento mudo, onde o único sorriso é dado na “zona” por um velho roseano, marcado fundo pela vida. Espaço rural onde Luis Garcia (personagem shakespeariano) nos lembra a tragédia grega do não-conformismo, ainda que afastando-se do genial Vento do Leste, de Godard, que vai por um radicalismo político mais acentuado como experimentação e linguagem. Abel vai por outros caminhos sem trair o país e o cinema. A sua constituição é poética, espiritual, visual e roseana. Desde a exuberância criativa de Gregório de Matos e Serras da Desordem, não víamos um filme nosso tão ousado e original. Daí a lentidão, os silêncios e, às vezes, a presença contida do narrador, a nos conduzir pela história trágica de nossa formação.
Abel vai pelo caminho inverso de Hollywood, vagando com o seu personagem entre a angústia e a paisagem estonteante, muito bem fotografada. Luis Garcia é a afirmação de uma vontade enlouquecida da razão. Portanto, um registro poético da terra com os personagens fechados entre o delírio religioso e a morte. Seres trágicos do nada, voltando ao nada de onde nunca conseguiram sair. Faroeste é um longa espaçoso contrário a natureza do fácil. Claro que pode até não ser apreciado, apesar de ser um grande filme. O cinema-poema de Abel de Carvalho é, sim, uma intensificação de imagens em conexão com uma paisagem rara de ser vista no nosso cinema, e que ilustra bem um texto de Bachelard: “…pela tradição de sua natureza, longe de qualquer história dos homens. Antes que os deuses aí chegassem os bosques já eram sagrados. Os deuses vieram habitar os bosques sagrados. Não fizeram mais do que acrescentar singularidades humanas, demasiadamente humanas, à grande lei do devaneio da floresta.”
Esse Faroeste tropical faz viver a nossa tragédia silenciosa da terra, que nunca é mexida. Entra governo e sai governo e a reforma agrária segue como problema de comunista, e não da necessidade da terra ser de quem nela vive e produz. Eis a origem de um projeto grandioso feito com muita luta por parte de todos. Filme de ultrapassagens do próprio espaço dos personagens de Guimarães Rosa. Um campo vasto para investigação da narrativa, lembrando O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, pois ambos manifestam seus interesses pelas questões da terra. Cada um a seu modo dá visibilidade às diferenças de classe. De um lado o poder a ser dessacralizado, e do outro a alienação do povo sustentada pelo latifúndio, claro, pelo poder dos donos da terra improdutiva e pela religião sempre conservadora querendo salvar a tradição, família e propriedade.
O invólucro exterior é diferente porque Glauber articula-se politicamente, enquanto Abel tenta despertar a terra por uma narrativa de choques como defendia Walter Benjamin para o cinema. Interessa-nos, então, pensar a inorgânicidade do encontro do cinema com o real. De como o filme pode gerar discussões estéticas e políticas além do papel social do cinema. Em Faroeste, a apreensão do real passa por uma refuncionalização no uso político do próprio povo como personagem-choque. Por isso Abelardo de Carvalho se permite trabalhar não só o movimento como questão fundamental de todos, como a experiência do outro em excessos de espaços e ideias, expressos também como poesia. É neste ponto que o filme nos pega: como dimensão de uma narrativa muito original, raramente vista no nosso cinema.
“Nonada!” – com este arcaísmo Guimarães Rosa iniciou um ciclo incomparável e inesgotável linguístico, e fenomenológico do em si e de todos nós brasileiros, onde o outro não seria somente uma extensão mas, fundamentalmente, também uma origem, um princípio, uma norma. Não como regra, lei ou fundamentalismo, mas como um ciclo de aprendizado para uma formação e uma melhor ideia de Brasil. O que os americanos fizeram para eles com seus faroestes. Expansão, domínio e extermínio.
Tais faroestes aqui, como extensão da América para nós, foi um desastre, como nossa formação. Em Grande sertão: veredas, a nonada é uma extensão nossa, de nossa capacidade criadora e inventiva associada ao mito, à natureza e ao conhecimento que viria a chegar, infelizmente como não esperávamos, com a selvageria do capital. Na verdade, Guimarães foi um iluminado e seu primeiro pacto não foi com o demo e sim com o mito. Um mito moderno que, imediatamente, se tornaria contemporâneo, como em Faroeste, que destoa, a desdobrar e desconstruir tudo o que se fez como faroeste americano.
Este Abelardo Guimarãesroseado segue as trilhas de Grande Sertão e de suas veredas mortas e vivas. É metalinguagem até nas cavernas mineiras onde a luz do sol não penetra, mas que Abelardo ilumina à luz de tochas para nos mostrar o esgotamento pela nossa ignorância e o escondido em nós mesmos pela artificialidade de nossa formação de faroestes americanizados. A linguagem desse faroeste mineiro, o de Abelardo, é de uma extensão que não se apropria para deformar. É linguagem que se associa em pactos de natureza humana e de mitos. De aberturas, de buscas e de extensão nos sem fins de nós e de nossos sertões: individuais, sociais, psicogênicos e fenomenológicos. É mesmo um Faroeste de Abel, como Guimarães fez seu Grande Sertão. Elevação, conhecimento e genialidade.
Acontece que o nosso mito moderno foi transformado, mutilado, corrompido. É só deformação. De caráter e de virtude! Este ser humano que somos. Ignorância, ideologias e horror. E haja corrupção e capital para compensar e fetichizar como religiões contemporâneas de papas, bispos e filhos. Mas o que fazer? Na concepção de Estado de Lênin, muita coisa se explica. Mas, Marx é imbatível: “…o criminoso produz o crime mas, também o Código Penal.” É o mundo contemporâneo do capital formando o mundo dos faroestes e o mundo da burguesia, e toda ordem onde estamos assentados com vontade, pela compensação ou pela força. Mundo invadido, militarizado e sitiado para gáudio dos capitais.
É a tortura produzindo anistias! Só mesmo no Brasil, um dos países mais violentos do planeta, superando todas as estatísticas! Como vitória dos faroestes. Entre nós são tantos os exemplos que, só mesmo, um filme como esse para superar e nos recompor com outra vida: a dos vagalumes iluminando estrelas! Pelo sentido crítico, desbravador, poético, natural e humano. Narrativa de um faroeste onde uma fala não se apropria da outra, como acontece em nossa vida política, econômica e cultural, e onde nenhuma verdade se sujeita – foge. Principalmente no cinema, nas telas, fetichizados pelo indomável Oscar, mago das multidões globais.
O que nos garante que este novo filme de Abel não é também um faroeste americano? Claro, é justamente o sentido de uma “nonada”, a de Guimarães Rosa. Uma correia de transmissão e de extensão de outros tempos, os de nosso interior e os das cavernas.
Faroeste traz os tempos de Guimarães, Beckett e até Joyce, pelo nhem, nhem, nhem e por “essa maldita lembrança das coisas”, o que sai da boca dos personagens. É tempo de uma superação, a do lugar-comum, dos que nos impregnam os faroestes americanizados e deformadores de nossa cultura e desejos. Onde sabemos mais de “Tom Mix”do que de nossa família e de nosso país. Sabemos mais de uma floresta de roliúde do que da Amazônica, de Villa Lobos, amada música, trabalhada com cultura brasileira e incomparável.
Na floresta de Faroeste, o cavalo branco de Luis Garcia, o personagem não é o cavalo branco de Tom Mix, mágico e enganador. O cavalo branco de Luis Garcia marcha com e para outras extensões de poesia e natureza, alargando o universo de Luis, seu montador zeloso, companheiro e parceiro das travessias. Aqui a metalinguagem é desconstrução como avanços e aprendizados, pactos de mitos e conhecimento, e do que transborda como vontade e desejos e novos pactos de superação e de elevação das cotas, além da relação imutável entre miséria e riqueza, nosso padrão econômico, social, político e cultural. E onde o pobre vira classe média sem esforço, deixando a senzala para se aproximar mais um pouco da Casa Grande, e ficar mais blindado pela sua militarização, para continuar mais escravo ao lado do senhor, servi-lo como determinado pela ordem do sítio e da servidão. E sem nenhum sentido de uma extensão ou travessias, as do Faroeste, de Abelardo, um tiro certeiro na macroestrutura histórica, mitológica, de conhecimento e de nossa formação enquistada nos rincões, ou encasteladas nas mansões e nas Casas Grandes. Cevando as Senzalas. E quando iremos superá-las para que o tacão não descanse só na cabeça da multidão cada vez mais adestrada e alienada? De miséria e capital. Onde uma eleição nunca enfraquece o vencido, até o fortalece para novas investidas associando-se ao vencedor de quem se torna parceiro e base, degenerando tudo: a vida, a morte e os movimentos. Sem travessias!
O filme é mais do que emblemático, porque é o faroeste de todos nós, deste país distante e desconhecido, e avatarizado. Porque a cultura é o amplo e o limite. E quem a possui voa como nessa produção. O voo, a asa é quem dá. Quem dá a asa num filme como este é a vontade de voar, muito esforço e coragem de fazer pactos, cavalgar sertões e fazer travessias por um Brasil desconhecido. De cinemas, vivências e vida. A vontade em Faroeste não nos parece pouca coisa. Parece um projeto nascido já com asas. Pelo que já voou e pelo que ainda precisa voar como finalização poética, mitológica e de aproximações difíceis e, muitas vezes impossíveis. Com as portas se abrindo só depois da morte dos personagens. Como essa vida de Luis Garcia no filme.
Obra de fôlego, de vulto e de muitas intermediações: poesia, romance, filosofia, fenomenologia na construção e desconstrução de tempos, ideias e vontades. Com tudo já presente nesse laboratório de tantas naturezas e tão pouco ativado. Filme que se projeta como um laboratório primoroso pelo que realiza e pelo que expõe. Pelo que espera numa linguagem a construir e desconstruir. Filme de poucos exemplares. Em filmes como esse, o cinema brasileiro se classifica e se afirma cada vez mais não somente pelo seu processo criativo de expressão, linguagem e narração. Mas pelo zelo e os cuidados de uma produção trabalhosa e cuidada, principalmente, nas essencialidades, aproximações de conteúdo estéticos e formais, sem interferências. Numa demonstração de que o artista brasileiro é múltiplo em seus processos criativos, inventivos e de resistência. Como um Nelson Rodrigues, por exemplo. Tocou em nossa cultura, a estrutura e a superestrutura. As da família. E que entre nós é sagrada, consagrada e capitalizada. Fazendo dela uma das mais belas obras aqui produzidas. Pelo sentido arcaíco e contemporâneo de nossa mitologia. E que fazemos cada vez mais moderna pela apropriação e expropriação, pela deformação e associações de faroestes e avatares americanizados.
Esse não é somente mais um filme brasileiro, como qualquer outro para enganar o público. Trata-se de algo especial, de como são feitas certas coisas misteriosas e de travessias. De mundo dilacerado, descrente e impotente, onde o conhecimento é entretenimento, e o fetiche é o capital. E onde o sertão perde a grandeza e as veredas, e de pactos nas prisões. Onde estamos desde 1964. Para saber quem morre primeiro, que os lugares são poucos.
Faroeste é leve, delicado, colorido e musical como a bruma. E denso, sofisticado e em solipsismo, como nas relações Riobaldo/Diadorin. Nas sutilezas máximas onde as coisas pesam, no dizer de Hegel. Em que, na arte, o fundamental é o conteúdo. Hegel assevera que o conteúdo tem a significação da verdade. Pesada e de conteúdo que ninguém pode carregar. No filme de Abel, a razão da queda de Luis Garcia – o personagem narrador. Muito conteúdo, muitas travessias, poucos pactos. Essa relação maldita com a lógica, a ciência, a física e a exclusão da poesia. Esse extermínio da cultura grega.
De Platão a Marx onde tudo está e que, a arte, está proibida de tocar, condição decidida pelas comissões das mentiras e burocracias operacionais e setoriais de corporações e bancos. Estas algumas razões da queda de nosso tempo e de tudo mais. Principalmente da arte em que nos obrigamos ao nada como sobrevivência. Tão brasileiro e tão universal como o livro de Guimarães Rosa. Superando patas de cavalos, rodas de diligências, tiros e toda arrogância dos faroestes que destroçaram nosso imaginário. O filme de Abelardo de Carvalho nasceu com asas para revelar abismos de nossos interiores, de nossa natureza e de nossas cavernas. Em casa, nas telas e nas ruas. Nossa luta se tornou vã. Mas tudo é vão. A começar por nós. Nadas na invenção de conteúdos. Pena. Mas para os perniciosos de sempre, é a nossa Idade de Ouro.
* Fotos/Instagram cedidas pela atriz Juliana Terra, que atua em Faroeste.
2 Comentários
2 Commentários sobre 'Faroeste e a nossa formação'
José Cláudio Bruno
18 Abril, 2013| 10:55 pm
Tive a honra de atuar no filme junto com esse elenco fantástico.
Foi uma experiência fantástica!
Obrigado Abel por ter me incluído no recrutamento que fez em nossa região! O site que fiz foi em sua homenagem e para ajudar a divulgar o teaser do filme.
José Cláudio (O “Cigano”).
Juliano Garcia Gonçalves
19 Abril, 2013| 11:06 am
Parabéns pela iniciativa. Estou ansioso para assisti-lo.
Já tinha ouvido através de minha vó muitas histórias de meu parente Luis Garcia.
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